Com apenas 2 anos, Alice* vivia em situação de rua com seus pais no centro da capital paulista e, em parte do tempo, frequentava abrigos familiares da prefeitura de São Paulo – SP. A situação precária colocava em risco a proteção e o desenvolvimento da menina, que logo foi afastada de seus pais biológicos por decisão judicial, encaminhada para um acolhimento institucional — serviço que acolhe, em medidas protetivas por decisão judicial, crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados — e posteriormente acolhida pelo Projeto Famílias Acolhedoras, do Instituto Fazendo História, que a encaminhou para um lar temporário com uma família acolhedora.
Alice, em meio a tantas mudanças e sem compreender os seus sentimentos, começou a demonstrar suas emoções por meio do comportamento: passou a ter momentos de raiva, nos quais quebrava os pertences e espalhava fezes nas paredes da casa.
“Ela manifestou o momento que estava vivendo da forma que uma criança de 2 anos poderia, então ficou brava, quebrava as coisas, teve manifestações mais difíceis como passar cocô na parede, crises de raiva, que por um lado seria a forma de uma criança pequena se expressar e por outro demonstrava um imenso sofrimento, ela não estava bem”, conta Ana Raquel Ribeiro, psicóloga, psicanalista e coordenadora do Projeto Com Tato, também do Instituto Fazendo História.
“A criança pequena indo para um lugar estranho, a família acolhedora tendo que cuidar desses casos de raiva que não são fáceis, a família de origem se vendo afastada da filha, a qual tinha um vínculo, não é fácil para ninguém”, complementa.
Dada a situação, Alice foi encaminhada ao Projeto Com Tato para acompanhamento psicoterapêutico: “Recebemos a solicitação de atendimento dela para oferecer uma possibilidade de entrar em contato com essa confusão de sentimentos. O espaço da psicoterapia permite entrar em contato com esses sentimentos, nomeá-los e poder de alguma forma recontar essa história e se entender com ela”, explica Ana Raquel.
“Mesmo uma criança pequena é possível que em um espaço como o da psicoterapia ela possa nomear os seus sentimentos, se apropriar deles, legitimar que ela fica com saudade, raiva, se sente frustrada, com medo de não saber onde estava e nem para onde ia, estranhar essas mudanças todas e ter um espaço reservado e dedicado para isso com um apoio profissional”, completa.
As sessões de psicoterapia usaram a contação de histórias como estratégia para a Alice compreender tudo o que estava acontecendo e foi assim, com muito acolhimento e compreensão, que a menina começou a contar sua história, inicialmente em terceira pessoa, até se colocar como protagonista.
“O uso da terceira pessoa nessa faixa etária é normal, faz parte do processo de aquisição de linguagem. O ponto de atenção é que também se espera que isso caminhe rumo a primeira pessoa porque é construtivo mesmo dessa fase da vida. Mesmo com toda dificuldade que a Alice viveu, o cuidado que ela teve ao ser acolhida permitiu que ela seguisse esse processo de desenvolvimento, não só na aquisição da linguagem, mas no uso dela. Ela é uma menina que apresentava riqueza na produção de histórias e brincadeiras, isso é sinal de saúde mental da criança”, comenta Ana Raquel.
Em paralelo ao atendimento que Alice estava recebendo pelo Projeto Com Tato, o Projeto Famílias Acolhedoras também estava trabalhando com a família de origem para que pudesse retomar o vínculo com a filha.
“Em um caso como esse não precisava inexistir os pais na vida dela, mas eles não poderiam cuidar dela da forma como estavam, porque isso causaria um problema para ela. Isso não significa tirá-los completamente da possibilidade de ter um convívio e ela ter um pertencimento da origem dela”, afirma.
Após um árduo trabalho, o Instituto Fazendo História proporcionou à Alice construir uma nova história com sua família. Atualmente, com 3 anos, a menina vive com uma tia avó, mas mantém contato com os pais biológicos, sem comprometer os cuidados necessários para o pleno desenvolvimento de uma criança.
“Foi um caso muito significativo para todo mundo que acompanhou. É muito legal e importante quando vemos a criança e a família sendo cuidadas”, finaliza Ana Raquel.
Projeto Com Tato é reconhecido pelo Prêmio Criança 2020
O Projeto Com Tato, desenvolvido há 16 anos pelo Instituto Fazendo História, oferece atendimento psicoterapêutico, nas modalidades individual e familiar, às crianças e aos adolescentes que estão ou estiveram em acolhimento institucional.
Em 2020, foi premiado pela 23ª edição do Prêmio Criança, da Fundação Abrinq, que teve como objetivo reconhecer e disseminar ações, desenvolvidas exclusivamente por organizações da sociedade civil, que contribuíram para promover a saúde mental na infância e adolescência.
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* Nome e imagem alterados para preservar a identidade da criança.